Cartografia de Ossos <font size=-0,5>(1)</font><br><font size=-1>Música sem Partitura de Domingos Lobo </font size</>

Sérgio Sousa

Um tí­tulo de ime­diato in­qui­e­tante; ve­remos de­pois que ade­quado, jus­ti­fi­cado.

Car­to­grafia, re­pre­sen­tação de uma no­tícia que serve para ori­entar; ossos, os des­pojos in­te­ri­ores, es­tru­tu­rais, que restam. (Uma per­so­nagem ex­pres­sará, pág. 133: «Não quero re­denção nem cas­tigo, alhe­a­mento apenas. Que nem os ossos fi­quem para tes­te­mu­nhar a minha pas­sagem pelo mundo...»).

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Por­tu­gueses, car­re­gamos a me­mória da des­co­berta de rotas ma­rí­timas, e dos trá­ficos que nelas em­pre­en­demos; o me­lhor e o pior, a ci­ência náu­tica e os ne­greiros.

E no co­meço do sé­culo XXI, ainda as fe­ridas abertas du­rante quase me­tade do an­te­rior por uma re­pressão atroz, sus­pensa numa ma­dru­gada de Abril, sem de se­guida se terem li­qui­dado de­vi­da­mente as res­pec­tivas contas.

Trans­por­tamos igual­mente os re­fe­rentes cul­tu­rais que so­bre­vi­veram aos seus cri­a­dores.

Tudo ocor­rên­cias pas­sadas, de que per­sistem resquí­cios, en­ter­rados, de­sen­ter­rados.

E vi­vemos num mundo onde al­guns va­ti­cinam – e não só va­ti­cinam, nisso efec­ti­va­mente se em­pe­nham – que um «lodo» alas­trante aca­bará por sub­mergir muitos ou­tros, pág. 131: «so­bre­tudo aos in­gé­nuos..., aos ide­a­listas que acre­ditam nas ma­dru­gadas que cantam.»

Per­cursos, não por com­pleto des­ven­dados, nem re­a­bi­li­tados, nem ter­mi­nados.

Ro­mance, in­ques­ti­o­nável: per­so­na­gens, com pas­sado, pre­sente, con­sis­tência com­plexa, evo­luindo por di­fe­rentes es­paços e ao longo do tempo, não cro­no­lo­gi­ca­mente, pe­ri­pé­cias. Es­cor­reito e exu­be­rante, ad­jec­tivo este que no pre­fácio do livro Ur­bano Ta­vares Ro­dri­gues uti­liza para qua­li­ficar o ta­lento de Do­mingos Lobo.

Ro­mance onde afluem as di­men­sões de poeta e de dra­ma­turgo do seu autor; de poeta, na ca­ta­dupa das me­tá­foras e ale­go­rias ur­didas com vo­ca­bu­lário ver­sátil e de pre­cioso re­corte frá­sico; de dra­ma­turgo, nos ce­ná­rios in­vo­cados pelas per­so­na­gens, na emo­ti­vi­dade das cenas, na es­tru­tura nar­ra­tiva in­tensa as­sente, ainda que sub­til­mente ca­mu­flados, nos so­li­ló­quios e diá­logos – quanto a estes, mais pro­pri­a­mente, no con­tra­cenar –, sem que o nar­rador se mostre, não obs­tante es­teja do prin­cípio ao fim pre­sente en­quanto tal na uni­dade de es­tilo, que ex­presso em di­fe­rentes an­da­mentos, aliás con­sig­nados no pró­prio texto/​par­ti­tura, as­se­gura um dis­tan­ci­a­mento crí­tico do autor mesmo quando os temas se re­velam cruéis e até té­tricos.

Tudo ser­vindo uma pa­no­râ­mica sócio-cul­tural e um apro­fundar do hu­mano que fazem de «Car­to­grafia de Ossos» um ro­mance maior do nosso tempo.

*

Ro­mance po­li­cial?

Também, e de es­pi­o­nagem, na in­triga de que se serve do de­sen­rolar e des­vendar de uma in­ves­ti­gação cri­minal onde não falta, se­quer, o con­fronto entre o de­tec­tive pri­vado e o bófia, ou chui. Im­bri­cada, com falsas pistas e volte-faces, mas de que aqui apenas cabe elo­giar a sua efi­cácia a captar e a manter presa a atenção do leitor.

Mais es­sen­ci­al­mente, po­li­cial e de es­pi­o­nagem por imergir no bas-fond.

Desde «Os Na­vios Ne­greiro não sobem o Cu­ando»2, e re­cen­te­mente em, por exemplo, «A Es­tranha Guerra do Largo do In­ten­dente»3, en­contra-se na prosa de Do­mingos Lobo, tornou-se nela uma marca de es­tilo, o in­gresso com grande à-von­tade na vi­vência do lumpen, trans­mi­tido li­te­ra­ri­a­mente pela re­cri­ação da viva e va­riada se­mân­tica que lhe é pró­pria.

Di­fe­ren­te­mente dos bur­gueses de Mau­pas­sant, e mesmo dos de Fel­lini, Do­mingos Lobo não olha «de cima para a ca­naille, antes como Gorki, ou Goya, no meio dela pers­cruta «na mi­séria, na de­gra­dação, ainda uma dig­ni­dade hu­mana, que» sabe ex­pressar im­pres­si­va­mente, sem sen­ti­men­ta­lismo nem de­ma­gogia. Não apenas o ritmo de­sen­freado da saga das per­so­na­gens eso­té­ricas de «O que diz Mo­lero», Dinis Ma­chado - Li­vraria Ber­trand, 1977 -, não só o con­vívio em es­paços e com gentes mar­gi­na­li­zadas de «Me­mó­rias de um rufia lis­boês», Or­lando Neves - Edi­to­rial Es­critor, 1994 - , para além de tudo isso, uma pro­cura se­mân­tica, um re­fe­ren­cial li­te­rário e uma pers­pec­tiva so­ci­o­po­lí­tica e cul­tural.

Não ha­verá, na fo­cagem de zonas cul­tu­rais tidas como des­qua­li­fi­cadas, que buscar re­fe­rentes para Do­mingos Lobo, porque ele sim, as­sume essa po­sição na nossa li­te­ra­tura con­tem­po­rânea, pela de­sen­vol­tura com que em tais zonas pe­netra po­e­ti­ca­mente, e de que apenas nos ocorrem pa­ra­lelos nou­tras artes, como no ci­nema de Et­tore Scola de «Feios, porcos e maus» [1976], e nal­guns qua­dros de Francis Bacon, e mais até de Paula Rego, usando uma lin­guagem que su­pe­ri­or­mente in­tegra gíria, calão, pa­la­vrão, ao ser­viço de um re­a­lismo cru, até ao âmago do hu­mano.

Do­mingos Lobo pa­ten­teia-nos a cons­ci­ência do te­cido sócio-cul­tural da língua, que ar­tis­ti­ca­mente lavra.

*

 Fa­lemos um pouco apenas do en­redo, tão-só para es­pi­caçar cu­ri­o­si­dades:

Em Lisboa um velho tor­ci­o­nário e as­sas­sino, «oi­tenta anos, o cancro a de­vorá-lo, sem es­pe­rança», sen­tado «às tardes no sofá, quando as forças lho per­mi­tiam,» «do vasto es­cri­tório» onde se es­pa­lhava «o es­pólio de uma vida», que com­por­tava in­clu­sive «uma co­lecção de obras de arte», o mais do tempo dei­tado numa cama ar­ti­cu­lada, as­sis­tido por uma «en­fer­meira, fiel com­pa­nheira de ma­leitas e des­tinos azi­agos», con­trata um de­tec­tive pri­vado – que vi­remos a saber, pág. 198, não ter sido es­co­lhido por acaso – a quem in­cumbe de lhe en­con­trar e trazer «um filho de ado­les­centes des­va­rios».

O tor­ci­o­nário nas­cera na mi­séria, como conta, pág. 132: «...co­nhecia-a por dentro, bebi-lhe o leite azedo até ao tu­tano. Pre­ci­sava evadir-me desse es­trume, desse chão vis­coso que se ali­menta de fezes, ig­no­rância, ab­surdas crenças, pas­si­vi­dade ig­nara. E con­segui...» Re­latar-nos-á como.

O de­tec­tive é um homem – na in­fância, cu­ri­o­sa­mente, passou por Na­go­sela4, pág. 93 – que não pre­enche o pro­tó­tipo do pro­fis­si­onal sagaz, «de olho vivo» e «bom de briga»; pelo con­trário, míope, usa umas lentes «fundo de gar­rafa» numa ar­mação de ma­ca­caúba e, «sen­sível», pág. 60: «outro mister lhe as­sen­taria: bai­la­rino do Bolshoi; cos­tu­reiro, poeta ro­mân­tico dado a so­netos de­vo­rados pela tí­sica.» Na cena de acção mag­ni­fi­ca­mente des­crita na pág. 109, acaba sendo do ad­ver­sário a de­cisão de «de­volver-lhe a dig­ni­dade em de­clínio ins­tável.»

O velho ago­ni­zante ini­ciara a sua car­reira como sol­dado da GNR, lim­pando os ca­valos e re­mo­vendo es­trume nas ca­va­la­riças do Quartel do Carmo. «Step by step», como lhe aprazia dizer, fora as­cen­dendo na­queles anos de im­plan­tação dos fas­cismos na Eu­ropa e das guerras que de­sen­ca­de­aram, le­gi­o­nário em 1938, com de­zoito anos de idade – pág. 52 –, guindou-se de­pois a guarda pri­si­onal no Al­jube, a agente da Pide, a ins­pector da mesma casa e, por mor das con­tin­gên­cias da ne­gre­gada pro­fissão, se­guiu mesmo um per­curso in­ter­na­ci­onal, com es­pe­ci­a­li­zação em tor­tura ci­en­tí­fica na Ale­manha, ac­tu­ação como agente in­fil­trado e pro­vo­cador em Paris no Maio de 68, co­la­bo­rando ainda com ou­tras «se­cretas» cri­mi­nosas ao ser­viço de tris­te­mente co­nhe­cidos cau­di­lhos. No tra­jecto, sempre que se pro­pi­ciara, fora-se apro­pri­ando de al­guns pe­cú­lios alheios, como o que «guar­dava» da de­ca­dente pros­ti­tuta Ca­reca, quando foi «en­con­trada [morta] pelos al­meidas da câ­mara», o que lhe per­mitiu, na con­jun­tura eco­nó­mica «fa­vo­rável» do sa­la­za­rismo e também com «bons co­nhe­ci­mentos», re­a­lizar os seus pri­meiros in­ves­ti­mentos imo­bi­liá­rios, págs. 69/​70. Igual­mente, de um amigo es­pe­cial que as­sas­sinou, veio a lo­cu­pletar-se com va­li­osas peças de arte.

Capaz dos de­sem­pe­nhos mais sel­vá­ticos, leia-se, págs. 112/​113, o re­lato do lin­cha­mento de um pa­triota negro, numa noite em Lou­renço Mar­ques, este pide não se apre­senta um boçal, antes sabe ali­nhar des­culpas para o seu com­por­ta­mento. «O meio é o homem», diz, e «vindo» ele donde viera...

En­quanto guarda no Al­jube ce­dera a pe­quenos su­bornos, pág. 53, «a troco de quase nada; uns lápis, papel, umas cartas pas­sadas sem a vis­toria cen­sória do co­mando», ob­ti­vera que «al­guns presos, quase todos co­mu­nistas», lhe en­si­nassem «ma­te­má­tica, por­tu­guês, francês», co­nhe­ci­mentos que ti­vera o dis­cer­ni­mento de des­co­brir quanto lhe se­riam úteis. Como re­co­nhece, di­ri­gindo-se ao de­tec­tive: «Você não ima­gina o que aquela gente me en­sinou».

Não ad­mira que seja na boca deste velho tor­ci­o­nário que Do­mingos Lobo co­loque um dis­curso ter­rí­fico, mas lú­cido, sobre o pro­pó­sito de con­tra­riar a evo­lução do mundo.

E na cama onde ago­niza can­ce­roso, mas ci­ente de que algum ini­migo pode ainda chegar para um der­ra­deiro ajuste de contas, o an­tigo ope­ra­ci­onal da re­pressão pro­fere para o de­tec­tive, pág. 131:

«A vossa re­vo­lução fa­lhou, meu caro. Olhe para os lados, veja o que por aí vai... A vossa re­vo­lução está hoje in­qui­nada, os abu­tres do ca­pital to­maram-na por dentro, a so­cial-de­mo­cracia é hoje uma pa­tranha des­ne­ces­sária. O vosso“Es­tado so­cial”...vai de­fi­nhando aos poucos de morte na­tural e gan­gre­nando de ini­qui­dade sór­dida: ago­niza num charco de cor­rupção, co­man­dada do alto por capos ma­fi­osos, por uma teia de in­te­resses si­nis­tros que se ins­ta­laram na banca, nos mi­nis­té­rios, na jus­tiça, nas es­tru­turas do Es­tado, nos jor­nais. O lodo é total e há-de sub­mergir-vos, so­bre­tudo aos in­gé­nuos como você, aos ide­a­listas que acre­ditam nas ma­dru­gadas que cantam.» (Ne­grito meu.)

Duas mu­lheres se cru­zaram na tra­jec­tória do jovem, e então gar­boso, sol­dado da GNR; das in­ter­fe­rên­cias que nela ti­veram, ou vice-versa, sa­berá quem leia o ro­mance.

O de­tec­tive, desde a in­fância car­re­gava a culpa de julgar não ter cor­res­pon­dido às ex­pec­ta­tivas do pai, mi­li­tante da es­querda que, após uma pas­sagem pela prisão, se isola de todos, so­çobra no al­co­o­lismo e se sui­cida, en­quanto a mu­lher en­san­dece.

O velho le­gi­o­nário, tor­ci­o­nário, as­sas­sino, en­carna o herói ne­ga­tivo; o de­tec­tive é o seu exacto con­trário, o não herói, que nada des­cobre do que in­ves­tiga, antes acaba sur­pre­en­dido pelas re­ve­la­ções dos ou­tros, mesmo quanto ao que de mais ín­timo a si apenas res­peita.

*

 Para de­sem­pe­nhar as ta­refas de en­con­trar e trazer o filho ao tor­ci­o­nário, o de­tec­tive, de seu nome Ra­fael, des­locar-se-á de Lisboa ao Porto.

Apre­ci­emos a mes­tria do ro­man­cista, acom­pa­nhando o ama­nhecer do do­mingo da par­tida na sala de vi­sitas do an­tigo im­pério, o Rossio de Lisboa, pág. 18:

«O sol, ma­draço, entre nu­vens. Lisboa mansa de mo­nhés ca­bis­baixos e ajun­ta­mentos cri­oulos na me­dina do Rossio, sau­dosos das bo­la­nhas da Guiné. Os des­va­lidos do ca­pi­ta­lismo em saída pes­ti­lenta do pa­pelão, as mãos sujas es­ten­didas à es­mola de tu­ristas so­nâm­bulos na igreja de S. Do­mingos, o cheiro a ranço cos­mo­po­lita do Mc Do­nald’s, os ar­dinas a vender so­nhos re­tar­dados, os graxa com a mi­séria ter­ceiro-mun­dista a ti­ra­colo, a gin­jinha a so­bre­viver num gueto a tre­sandar a sé­culo XIX, um te­atro na­ci­onal de­fi­nhando na es­té­tica un­tuosa e lorpa do li­be­ra­lismo de ca­saca, pom­poso nas co­lu­natas he­lé­nicas, a armar ao clás­sico pin­dé­rico pós-pom­ba­lino, de­sen­qua­drado da har­monia sim­ples e geral que o marquês impôs à re­cons­trução da ci­dade; res­tau­rantes de la­bregos, tra­ves­tidos de em­pre­sá­rios ho­te­leiros, com ementas de bafio e unto, a pis­carem o olho ao tu­rista de­sar­mado; ar­ga­massa de frango no es­peto e bi­fanas gor­du­rosas em cas­queiro de es­fe­ro­vite para o ine­vi­tável de­sar­ranjo das miu­dezas.

Lisboa dos do­mingos ca­pados, tédio sem re­misso desde as ne­vo­entas ca­pi­tu­la­ções se­bas­ti­â­nicas, a fazer de ca­pital cos­mo­po­lita em pá­tria es­treita e in­sa­lubre, ainda com som­bras de in­qui­si­dores, es­birros e bufos pelas es­quinas.»

E o adregar do de­tec­tive a um Porto Manso5, págs. 39 e se­guintes:

«O Largo de Cam­panhã, com tascas ta­ci­turnas e pen­sões ma­nhosas. Sala para poucas vi­sitas: chegar e andar. Uma chuva re­donda, mansa, es­boroa o em­pe­drado, a luz aquosa treme nas poças de água, nos néons das lojas, nas mon­tras sujas de ex­cre­mentos de pás­saros va­dios e moscas re­sis­tindo à ca­cimba noc­tí­vaga.»

«...pátio Fon­tinha, nome de lugar, de sítio, ilha seria, uma ilha no Porto já ro­deada de pré­dios altos e o ca­mar­telo a avançar ame­a­çador, pátio de ve­lhos que aguardam o úl­timo sopro dos frios e de jo­vens que en­ve­lhecem de re­pente, ao cair do es­tuque, da ca­liça, da chuva que se in­sinua pelas te­lhas em de­clive sobre os tan­ques de lavar roupa, a chuva no musgo dos bei­rais, nas rugas. Pátio de po­bres, ilha de de­ser­dados num Porto que os cerca de pré­dios altos, de ci­mento e si­lêncio, que os es­conde na pe­numbra dos ce­ná­rios para que se não vejam as ma­zelas, os rostos, a mi­séria ao vivo e a cores – o surro das roupas de dentro.»

*

Porém, mais do que ro­mance po­li­cial e de es­pi­o­nagem, tra­gédia.

Em­bora oculta, ou­trossim para servir a tác­tica de sus­pense da trama in­ves­ti­ga­tória, mas efec­ti­va­mente di­e­gese trá­gica, porque aca­bamos por des­co­brir – e os in­dí­cios sempre nos ti­nham sido pro­por­ci­o­nados no de­curso dela, v. g., a no­tação da vi­zinha do prédio em frente, a que no co­meço não damos atenção, mas que tor­nada re­cor­rente nos in­triga, e só na pág. 156 se enuncia, «lugar si­nistro que tem um prédio em frente onde num 2.º andar aberto às suas in­tros­pec­ções de aprendiz de fei­ti­ceiro, de ana­co­reta mór­bido, ha­bita um mis­tério que Ra­fael des­ven­dará um dia, quando a co­ragem lhe der ânimo e lhe co­mandar os gestos e os passo que in­se­guros andam» – que as per­so­na­gens têm tra­çado um des­tino pela in­te­racção das suas con­di­ções so­ciais, a que não po­derão eximir-se, e que a partir daí, da des­co­berta da pág. 163, re­ve­lação, o que no dizer de uma per­so­nagem «pa­rece um pouco fo­lhe­ti­nesco», na es­sência ver­da­deiro re­co­nhe­ci­mento, ine­xo­ra­vel­mente se cumpre.

O pró­prio pide dirá, pág. 134: «Os de­lin­quentes são pro­duto do meio so­cial. Aqui tem uma bou­tade mar­xista com a qual con­cordo. Eu, por exemplo, se vi­vesse outro tempo e uma outra si­tu­ação so­cial, seria por certo um me­cenas, um bom sa­ma­ri­tano...».

Assim, o filho do sui­cida ator­men­tado com o in­jus­ti­fi­cado re­morso de não ter cor­res­pon­dido à pro­jecção que, para si, im­puta ao pai ter feito, pode num im­pre­visto confim en­con­trar uma amante, não a sa­berá trazer con­sigo. E o que re­pu­diou um filho, des­curou outro, mor­rerá na in­cle­mência que de­ter­minou a vida da­queles.

*

 Pa­rá­bola:

Os al­gozes algum dia per­derão o poder e mor­rerão às mãos das suas an­tigas ví­timas. Destas, as mais ines­pe­radas sur­girão no mo­mento de se per­pe­trar o des­fecho.

Ro­mance re­a­lista do co­meço do sé­culo XXI.

No sé­culo XIX, mesmo quando se de­nun­ciava a in­jus­tiça so­cial, em regra im­pe­ravam mó­beis ide­a­listas, e a vida das per­so­na­gens obe­decia a de­ter­mi­nismos psi­co­ló­gicos.

A te­le­no­vela ac­tual – con­teúdo que também se co­mer­ci­a­liza no su­porte livro, dis­postos em pi­lhas a atra­vancar as en­tradas dos su­per­mer­cados – cumpre de­sen­vol­vi­mentos ma­ni­queístas em ce­ná­rios de ca­ri­ca­tura leve da re­a­li­dade.

Em «Car­to­grafia de Ossos», o cru mundo em que vi­vemos re­sulta da luta que lhe subjaz, e que Do­mingos Lobo exi­mi­a­mente sin­te­tiza, pág. 118: Um mundo em que uns, são «os ven­cidos de uma li­ber­dade que se foi aos poucos es­bo­ro­ando por falta de ali­mento, de oxi­génio, da febre dos húmus, dei­xando per­dido em la­bi­rintos de ranço um país pros­trado, sub­misso e au­sente, com a roupa de dentro a ver-se e o mau cheiro es­con­dido em caves bo­lo­rentas.» Os ou­tros, os que «que fic­ci­o­naram uma pá­tria ine­xis­tente, uma ficção de plás­tico, es­pécie de fá­bula cri­oula, fo­lhetim pi­egas no qual me­tade do povo fala um di­a­lecto in­dí­gena, in­tra­du­zível, e não cabe nem se re­flecte na fo­to­grafia da pompa e cir­cuns­tância, nessa va­cui­dade pífia e in­chada de ar pu­tre­facto que se mas­turba en­te­sando o peito para que nele as su­mi­dades desta pá­tria de eu­nucos que se “de­voram a si mesmos” es­petem, a pre­ceito, uma co­menda de lata e des­ver­gonha.»

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Notas

1 . – Nova Vega, Lisboa, 2012

2 . – «Mas o ca­pitão tinha seus ca­pri­chos, é na­tural. Tei­mava que aquilo era uma guerra e tinha de haver dis­ci­plina senão era do ca­raças, o caos, a anar­quia, com a con­se­quente fa­lência moral das tropas: o r.d.m. era para cum­prir. E o r.d.m. era o r.d.m. ca­tano, não era o ka­ma­sutra, isto não é bordel nem es­tância bal­near, seus tansos, e a partir de agora quem não cum­prir o que vem nos bu­ques, tem como prémio um ex­tenso rol de pas­sa­tempos que vai desde a lim­peza das fossas…

Como se a pre­sença destes des­te­midos ma­ri­nheiros não bas­tasse para ga­rantir a se­gu­rança e bem estar dos man­cebos – todos não somos bas­tantes, botas dixit –, lá es­tava o des­ta­ca­mento atento, ve­ne­rando e obri­gado da pide, a in­ter­rogar peixes, a ar­rancar unhas aos cro­co­dilos mais sub­ver­sivos, a es­pancar sobas e mai­natos fu­gidos à fome, a in­sultar a lua e a dor de corno, a coçar os co­lhões e a flor-do-congo até o sangue subir à ca­beça da picha, a pa­litar dentes po­dres, a en­cher o ar de vermes e mau cheiro.»

«Os na­vios ne­greiros não sobem o Cu­ando», Nova Veja, 2.ª edição 2005, pág. 20.

3. – A exu­be­rância de «A es­tranha guerra do Largo do In­ten­dente»:

Pág. 15: «Na­quela noite as pros­ti­tutas de entre Martim Moniz e In­ten­dente, an­davam em roda po­li­deira entre o basto as­sus­tadas e o li­gei­ra­mente in­qui­etas, era con­forme a idade e o tempo gasto em criar musgo e manha para con­tornar os apertos da bófia e os ata­ques dos chulos.

Pág. 27: O mundo es­tava cada vez mais igual e en­fa­donho: uma choldra. Era ur­gente uma nova re­vo­lução cul­tural. Este país não tem emenda. De­san­demos, disse im­pe­rioso Stanley. Em­bar­caram, nessa noite, num ca­ci­lheiro trô­pego rumo a Xangai. Com eles se­guiu Mi­co­li­na­co­ça­cu­dedo, cuja es­ca­para, dada a ve­tusta idade, à saga re­for­mista.

Este país é só re­la­xa­ções e de­vas­sidão ca­pi­ta­lista. Sempre afirmei, desde que vi o Afonso bater na Te­re­sinha, que este país não tinha fu­turo. Mi­co­li­na­co­ça­cu­dedo de­lei­tava-se em fi­lo­so­fias de pa­taco ca­tando pi­olho vesgo na ca­reca de Stanley Ho, en­quanto o luar de Ja­neiro en­trava pela es­co­tilha e lhe acir­rava a ur­ti­cária no ca­runcho das coxas.»

In «Ter­ri­tório Ini­migo», Edi­ções Cosmos, 2009.

4 . – Do­mingos Lobo nasceu em Na­go­zela.

5. – Tí­tulo re­do­liano, como se sabe. Um dia, de uma tese de dou­to­ra­mento cons­tará uma ex­ten­sís­sima lista das re­fe­rên­cias li­te­rá­rias con­tidas nesta, e nou­tras obras de Do­mingos Lobo, ainda que se res­trinja o in­ven­tário à menção de tí­tulos.



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